sexta-feira, 9 de maio de 2014

Casa antiga em Ribeirão do Tangará...

Todos os dias eu passava por aquela casa rústica, no final na rua do Macatú. Era uma rua longa, com uma leve ladeira toda fundada em pedras-sabão, pedras do tempo do Imperador, do tempo das colônias de café. A casa, não chegava a ter um estilo colonial clássico, mas tinha em suas janelas curvas superiores como que fossem inspiradas nas abóbadas das grandes catedrais. Na parte de cima das janelas, repousavam em semi-círculos, em meia lua, delicados mosaicos coloridos, das cores das mesmas pedras semi-preciosas que geraram riquezas na região do Ribeirão do Tangará, há muito tempo atrás.

Logo cedo, vinha de dentro da casa um cheiro gostoso de lenha queimando num antigo fogão feito de barro e ferro. A senhora que morava lá, antes que o galo cantasse, já estava sovando a massa de pão que iria assar por meia hora e sair crocante e defumada de dentro daquele tabernáculo de tijolos de barro. E logo que o sol apontava no horizonte, a mesa já estava posta, com queijos de dois tipos, requeijão de corte, doce de cidra, leite morno tirado em uma fazenda próxima, biscoitos de polvilho, pães de queijo fumegantes e o pão de forno à lenha. Essa mistura de aromas se espalhava pela rua e não havia quem não sentisse uma pontada de vontade de se fartar naquela mesa comprida, talhada em Jacarandá da Bahia, e onde repousavam as mais diversas iguarias feitas à mão.

Essa minha quase procissão, ocorria todos os dias ao passar por lá. Diminuía o passo pra poder absorver todas as sensações que vinham daquela casa antiga. Do portão podia se ver o jardim iluminado de flores com maços de chuva-de-prata e camélias, além de um roseiral amarelo que contrastava com a textura terracota das parede e da enorme porta de entrada em embuia maciça. Era uma pintura impressionista, como se tivessem sido pinceladas com toques curtos e rápidos de Monet, Van Gogh ou Renoir. Ao olhar atento, tudo ali era nostálgico e bucólico.

Diziam que a senhora que morava lá era viúva de seu Lindoval, antigo habitante da cidade e honorário cidadão que se destacou na política local e na busca de progresso para a pequena cidade. Mas o que é o progresso de uma cidadezinha perdida, quase provinciana. ele se foi e deixou-a bem de vida, com os filhos todos rumados. Às vezes, um ou outro ia visitá-la com os netos e a casa movimentava. Mas na maior parte do ano, ela vivia sozinha, com suas memórias e com os mesmos rituais que fazia quando seu marido era vivo.

Não que houvesse tristeza em seus olhos, mas uma profunda nostalgia de um tempo que ficou no passado. Até o ritual de preparar essa mesa de jacarandá todos os dias era para não se esquecer do passado. Apesar de lhe fazer companhia apenas um senhora negra, neta de escravos da família, ela vivia como se o tempo nunca tivesse passado, os filhos nunca tivessem crescido e o seu marido nunca tivesse morrido há tempos. Talvez fosse uma forma de cristalizar na lembrança seus momentos felizes. Afinal, como será viver com alguém durante décadas e de repente, se ver só no mundo, sem ter com quem compartilhar os dias, a comida, uma xícara de café, o leito, os assuntos mundanos de uma cidade esquecida no tempo.

Mas eu, mesmo sem nunca ter entrado naquela casa, me transportava pelos aromas e pelas histórias calcadas nos vincos das paredes daquela casa antiga, nos breves momentos em que passava por ela, seguindo o meu caminho. Meus passos eram passos processionais em frente àquela casa quase religiosa, e aquela senhora envolvida nos seus rituais como se fossem preces, para que pudesse seguir em frente, sem nunca pensar no futuro, apenas tornando suas lembranças passadas em algo que a mantivesse viva no presente.

Alguns anos depois ela se foi. Sem deixar amigos, herança ou quem cuidasse daquela casa antiga. E eu percebi que no meu caminho, aqueles aromas e sensações não existiam mais. Tinham partido com ela. Os roseirais já não haviam mais, nem suas camélias. Apenas um pequeno ramo de chuva-de-prata ainda resistia no jardim, por detrás do portão.

Hoje eu trago aquele pequeno ramo guardado dentro das páginas de um livro que fica à beira da estante, como que tentando eternizar aqueles momentos em que descia a rua de pedra-sabão, onde ao final dela, havia uma casa antiga com seus aromas. Onde havia uma presença bucólica e nostálgica no ar.

E toda vez que eu abro o livro nas páginas onde se encontra o ramo seco, eu me lembro daquela senhora, da sua história e da sua solidão por anos a acompanhá-la, até o fim de seus dias. Pois esse ramo que guardo comigo até hoje é a única herança que restou daquela casa antiga, ao final da rua Macatú, daquela senhora ausente de seu presente, mas que iluminava o seu passado como as fagulhas da lenha estalando naquele fogão de barro, em tempos idos nas bandas do Ribeirão do Tangará.

Nenhum comentário:

Postar um comentário